sexta-feira, 5 de abril de 2013

História social do Xis

 

    Assim mesmo X-I-S, agauchamento de cheeseburguer. Mas não foi só a palavra que ganhou outros contornos por aqui. O sanduíche também foi beneficiado por uma apropriação criativa. E bem valeria uma pesquisa histórica de verdade. Estou quase me animando a enfrentar a aventura. Eu e a Nikelen, que vai novamente ministrar um curso de História da Alimentação neste semestre, estamos conversando bastante sobre o tema.
    Minha impressão é de que o xis deve ter se difundido nos inícios dos anos 1980, senão na década anterior. Está nas minhas lembranças de infância o primeiro xis que chegou a Jaguari, lá por 1984. E, se estava lá nesta data, devia existir muito antes em Porto Alegre e Santa Maria. Lembro de vir a Santa Maria ver jogo do INTER contra o Inter (SM) e comer um xis ou cachorrão prensado depois da partida. Isso era motivo de se gabar perante toda a gurizada no colégio.
    O interessante é que o xis parece ter se enquadrado, nos primeiros tempos, no ar de novidade que tinham os fast-foods. Sem dúvida, foi associado ao Hamburguer norte-americano, aqui chegado através das telas de cinema. Daí a relação com velocidade, tecnologia, praticidade e juventude. Enfim, com os valores de uma contemporaneidade que, nos ’80, tinha o futuro como uma categoria-fetiche – lembram da estética repleta de ângulos, referências espaciais, neons? Isso desde os objetos de decoração, passando pela arquitetura, até a moda com ombreiras e cabelos esculturados com gel.
    Não é a toa que a Coca-cola era o acompanhante inescapável para xis. Tratava-se de uma das práticas de norte-americanização pelo consumo, que a juventude de classe média brasileira exercitou com dedicação naquela década. Havia uma música, do Gaúcho da Fronteira, em que ele criticava essa adesão, referindo-se a uma menina dizendo algo como “só toma coca com xis e repete que é feliz, mas vive muito confusa… tem direito de sonhar com essa vida made in USA. (…) Ô guria te endireita, tu já tá uma moça feita para bancar americana. Por causa do tal de rock, tu vives em Nova York sem sair de Uruguaiana.”
Porém, me parece que esse quadro foi se modificando nos anos posteriores. O xis difundiu-se verdadeiramente. Sua adaptação à gaúcha, ou seja, o sanduíche prensado até ficar com a casca do pão crocante virou marca distintiva e de orgulho regional. Santa Maria (universitária e jovem), vem sendo identificada como terra do xis, em um programa que foi, inclusive, encampado pela prefeitura municipal. Essa apropriação regionalista de algo que, antes, era tão “norte-americano” se deu em concomitância com a invasão dos verdadeiros fast-foods, os MacDonalds e seus genéricos. Algumas pessoas chegaram a dizer que não dariam certo por aqui, sendo que custavam o dobro do valor do “nosso” xis, mas com a metade do “peso”. O resultado é o que se vê, o MacDonalds está aí mas o xis segue vivo, encampando, ora vejam só, um discurso de resistência e matriz de construções identitárias. O xis aparece como uma refeição completa, daquelas que “pesam” no estômago, por um preço muito acessível. Para além do “lanche dos jovens de classe média” hoje o xis é consumido por várias camadas sociais. E talvez possa ser associado a uma longa tradição brasileira, uma “economia moral da comida”, entre as camadas populares, de que a melhor refeição tem que “encher a barriga” sem pesar no bolso. Enfim, são transformações dignas de atenção e curiosidade.
    Talvez seja isso, talvez não. São apenas pensamentos que podem indicar caminhos interessantes para uma história da sociedade e da cultura através da alimentação. De todo modo, foi uma delícia escrever o texto pensando em um xis bacon bem “golesmento”, feito em chapa velha. Porque todo mundo sabe que o xis tem mesmo tudo a ver com a história. Xis prensado em chapa nova não presta. A chapa tem que ter história, tem que recolher os sabores, os aromas e a graxa de muito tempo de uso. Não é mesmo uma beleza?

Fonte: http://www.sul21.com.br/blogs/terradosmuitos/2012/08/06/200/

 

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